Sermão sobre a Paixão

28/03/2014 15:54
Jesus disse então a André e Felipe: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem. Em verdade, em verdade eu vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanece sozinho; mas se morre, dá muitos frutos. Quem ama a sua vida, perde-a, e quem lhe tem ódio neste mundo, conserva-a para a vida eterna, etc.” (Jo. C. XII).
 
Aqui é prenunciada a Paixão de Cristo. Primeiro, o Cristo prenuncia estar iminente o tempo da sua Paixão; em seguida alude à necessidade da Paixão, pelas palavras: “Em verdade, em verdade eu vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, etc”, e finalmente, induz a necessidade do sofrimento dos outros, pelas palavras: “Quem ama a sua vida, perde-a”. Diz Ele pois: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”. Neste ponto, deve-se notar que o Senhor, vendo aqueles gentios se dirigirem para a Fé e percebendo neles principiar de algum modo a conversão das gentes, prenunciou estar iminente o tempo da sua Paixão, tomando este fato como um indício, assim como alguém que vê o trigal branquejar diz:
 
—  Chegou a hora de pôr a foice à messe (cf. Jo. IV, 35: “Considerai os campos: já estão brancos para a colheita”).
 
Assim pois fala o Senhor: — Visto que os gentios Me querem ver, “chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”. E de fato Ele foi triplamente glorificado. Primeiro, na sua Paixão, como se depreende de Hebr., V, 5: “Não foi o Cristo que se glorificou a si mesmo, fazendo-se Sumo Sacerdote (a saber, na ara da Cruz), mas sim Aquele que lhe dissera:
 
— Tu és meu Filho, eu hoje Te gerei.
 
É segundo aquele indício que Ele diz: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem”, isto é, de sofrer a Paixão. Antes da Paixão, com efeito, os gentios não se converteriam para Ele. Ora, na sua Paixão Ele foi glorificado não só quanto a sinais visíveis, como no escurecimento do sol, na cisão do véu do Templo, etc., como também quanto a sinais invisíveis, como no triunfo que obteve publicamente sobre os príncipes infernais, conforme Coloss., c. II. Mais acima (Jo. II, 4), Ele dissera: “Ainda não chegou a minha hora” (n.t.: nas Bodas de Caná): é que ainda não estava preparada, como agora, a fidelidade dos Gentes. Em seguida, Ele foi glorificado na Ressurreição e Ascensão. (...) Finalmente, foi glorificado pela conversão das Gentes (...).
 
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Assim se exprime Sto. Tomás na sua “Expositio in Ev. B. Joannis”, c. XII, Lição IV. Vemos aí, no cristal transparente do seu pensamento, o fundamento último da “Glória Passionis”: a Paixão do Senhor é gloriosa porque é o exercício, a consumação do seu Sacerdócio, “pelo qual estava reconciliando o mundo com Deus”. Esta glória é dada pelo Pai e se manifesta em dois sinais patentes: um para nós, os milagres cósmicos que acompanharam a morte de Cristo na cruz, outro para o mundo dos espíritos, a derrota das Potências invisíveis que tinham poder sobre o homem pecador e mortal; um e outro, objetos certíssimos da nossa fé. A própria Paixão e a própria Morte, como Obra redentora do Cristo, é que brilham e refulgem com glória divina e invisível.
 
Não se trata somente da glória inamissível da alma humana de Cristo, pela sua união hipostática ao Verbo, glória que só não refletia sobre o corpo por um milagre constante e que uma vez os Apóstolos Pedro, Tiago e João puderam ver por um momento no Monte Tabor, quando o Senhor se transfigurou diante dele; não se trata também da glória essencial que o Cristo possuía como Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade “pois o Filho não é senão um como resplendor e glória do Pai”, mas aqui se trata da sua glória de Sumo Sacerdote, no exercício da sua Liturgia, pela qual reintroduzia toda a humanidade na amizade e paz de Deus.
 
É a glória, grande mistério do “gloriosíssimo Vencedor do Diabo e debelador potentíssimo das forças inimigas, resplandecente de beleza, carregando o troféu do seu triunfo”; glória que os judeus não podiam ver, mas que toda a Igreja universal iria confessar dentro de pouco tempo. Glória que a nossa Mãe Maria Santíssima contemplava ao pé da Cruz e que também foi vista pelo Centurião e pelo Bom Ladrão; e por este, filho de Abraão, ainda antes da realização dos milagres tremendos daquele dia, como para que se verificasse mais uma vez que “os milagres são dados aos infiéis”, representados ali pelo chefe da corte, que exclamou: — “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus!”. Eis a glória sacerdotal do Cristo, que celebramos cada vez que, reunidos na assembléia litúrgica, “anunciamos a sua morte, até que Ele venha”.
 
Mas justamente por pertencer ao Cristo como Sacerdote, essa glória transborda d’Ele para toda a humanidade: “É com efeito em participação dos seus sofrimentos que estão, não só a gloriosa força dos mártires como também, pela própria regeneração (batismo); a fé de todos os renascidos. Pois quando se renuncia ao Demônio e se crê em Deus, quando se passa da velha à nova vida, quando se depõe a imagem do homem terrestre e se recebe a forma do homem celeste, aparece sempre um certo aspecto de morte e também uma certa semelhança da ressurreição; de modo que, recebido pelo Cristo e ao Cristo recebendo, o homem não é o mesmo antes e depois do batismo, mas o corpo do regenerado se faz carne do crucificado".
 
Assim é que compreendemos a consagração do sofrimento e da morte cristã: assim como em todos os tempos, só a fé em Cristo pode salvar, também em qualquer situação, o sofrimento só tem valor e significação para a vida eterna se for sofrimento de um membro de Cristo: neste caso será glória e motivo de glória. “Nos autem gloriari oportet in cruce Domini nostri Jesu Christi”. Nao se trata para nós de desprezar os sofrimentos e só pensar na glória: isso seria uma dissociação diametralmente oposto ao espírito cristão; muito menos de nos comprazermos nos sofrimentos considerados isoladamente da sua significação: trata-se porém de afirmar “uma glória do opróbrio e uma força da fraqueza”, posição infinitamente difícil, já de ser compreendida em abstrato, já de ser realizada em concreto.
 
Posição impossível mesmo de ser assumida pelas nossas simples forças humanas de inteligência e vontade, se não tivéssemos recebido no batismo, por obra do Espírito Santo, a graça de imitar o Cristo. Graça que a cada dia podemos renovar, “pois a participação do corpo e do sangue de Cristo não se realiza outra coisa senão a nossa transformação naquilo mesmo que recebemos, e a possessão em tudo, pelo espírito e pela carne, daquele no qual estamos com-mortos, com-sepultos, com-ressuscitados.
 
I- Percorridos, no sermão anterior, os fatos que precederam a prisão do Senhor, resta-nos agora, com o auxílio da graça de Deus, dissertar, como prometemos, sobre o próprio desenrolar da Paixão. Pois tendo o Senhor tornado bem claro, pelas palavras da sua sagrada oração, que existiam n’Ele de modo sumamente verdadeiro e pleno as naturezas humana e divina, mostrando assim de onde Lhe vinha o não querer sofrer e de onde o querer; tendo repelido de si o temor da fraqueza e confirmado a grandeza da força, retomou o sentimento da sua eterna disposição e, pelo ministério dos judeus, lançou ao feroz Diabo a forma do servo que nada possuía de pecado, para que a causa de todos fosse advogada por aquele único no qual existia, sem a culpa, a natureza de todos. Atiraram-se pois sobre a luz verdadeira os filhos das trevas e, embora usando tochas e lanternas, não escaparam à noite da sua infidelidade, porque não reconheceram o Autor da luz. Apoderam-se d’Aquele que estava preparado para ser preso e arrastam Aquele que queria ser arrastado e que, se quisesse resistir, nada poderiam as ímpias mãos para injuriá-LO: mas a redenção do mundo seria retardada, e, sem sofrer, a ninguém salvaria Aquele que devia morrer pela salvação de todos.
 
II- Deixando portanto que Lhe fizessem tudo quanto ousavam, sob a instigação dos sacerdotes, o furor popular, é conduzido a Anás, sogro de Caifás e em seguida, por ordem de Anás, (é levado) a Caifás. E depois das loucas acusações dos caluniadores, depois das imaginárias falsidades das testemunhas subordinadas, é transferido, por delegação dos pontífices, ao julgamento de Pilatos. Aqueles, com desprezo do direito divino, bradando que “não tinham como rei senão a Cesar”, (Jo. XIX, 15) como pessoas dedicadas às leis romanas, reservaram todo o julgamento ao poder do Governador, antes ansiando pelo executor da violência que pelo arbítrio da causa. Ofereciam Jesus amarrado por fortes laços, batido por numerosos tapas e socos, coberto de escarros, já condenado previamente pelos clamores, para que, no meio de tantos pre-julgamentos, Pilatos não ousasse absolver aquele que todos queriam condenar. O próprio processo mostra que nem ele encontrou culpa no acusado, nem tinha firmeza na sua opinião. O juiz condena a quem declara inocente, entregando o sangue do Justo ao povo iníquo; sangue do qual, pela sua própria inteligência e pelo sonho de sua mulher, sabia dever abster-se. O lavar das mãos não purifica o espírito contaminado e nem é expiado com a aspersão dos dedos o crime cometido com ímpia intenção servil. Excede á culpa de Pilatos o crime dos judeus que, aterrorizando-o com o nome de Cesar e excitando-o com palavras invejosas, provocaram-no à realização da sua maldade. Mas também não foge à culpa aquele que, superado pelas desordens, abandonou o próprio julgamento e participou no crime alheio.
 
III-  Pilatos, vencido pela loucura do povo implacável, permitiu que Jesus fosse insultado por muitos ludíbrios e vexado por desmedidas injúrias; à consideração dos perseguidores mostrou-O espancado de açoites, coroado de espinhos e revestido com o manto de irrisória veste. Pensou que sem dúvida isso abrandaria os ânimos dos inimigos; que, saturados os ódios invejosos, já não mais julgassem dever ser perseguido Aquele que viam afligido de tantas maneiras. Mas acendendo-se a ira dos que clamavam que soltasse Barrabás por indulgência e que Jesus sofresse a pena da Cruz; como se fosse dito em frêmito uníssono pelas turbas: “Sobre nós o seu sangue e sobre os nossos filhos”, obtiveram os inimigos para a sua própria condenação aquilo que exigiam pertinazmente. “Os seus dentes”, como testemunhou o Profeta, “eram armas e setas e a sua língua um gáudio afiado”. Inútil lhes era conter-se de crucificar com as próprias mãos o Senhor de majestade: atiravam-lhe os dardos letais dos gritos e as flechas envenenadas das palavras. A vós, a vós, ó pérfidos judeus, ó sacrílegos Príncipes do povo, cabe todo o peso deste crime; e conquanto a ferocidade do atentado envolva também o Governador e os soldados, todo o conjunto do acontecimento vos acusa. E tudo aquilo que, no suplício do Cristo, ou foi erro de julgamento de Pilatos, ou complacência da corte, mais ainda vos torna merecedores do ódio do gênero humano, pois pela insistência do vosso furor, nem foi permitido que ficassem inocentes aqueles que não se agradavam da vossa iniqüidade.

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